domingo, fevereiro 17, 2008

Pequena crônica de Claudionor e sua sombra

Claudionor não gostava da própria sombra.
Era um sujeito pacato e quieto, isso já era motivo suficiente para desconfiar de sua sanidade.
Era também um bom amigo, sincero e atencioso, o que o classificava definitivamente como algo no mínimo fora do normal.
Falando dele e de sua sombra: era mais que um simples desgosto, era uma neurose que ele revelava apenas para os poucos amigos íntimos. Uma obsessão pessoal que o mundo não precisava saber e nem eu tampouco escreve-la aqui.
Nunca soube ao certo o que exatamente ele não gostava em sua sombra, talvez fosse algo no formato dela, na postura, ou ainda na forma das orelhas, no comportamento ao caminhar, ou talvez o todo, simplesmente o todo e como ela o lembrava de seu próprio corpo.
O que Claudionor sempre dizia é que ela fazia tudo que ele fazia.
“sim, mas sombras sempre fazem isto,e é por isso que elas são sombras”.
“esta é diferente”.
E geralmente a conversa acabava por aí.

O que ele defendia, sempre com veemência, é que sua sombra o imitava, e naquela imitação muda, debochava dele, da sua personalidade, do seu corpo, era uma caricatura, um arremedo proposital, escarnecendo ele em tempo integral, segundo as palavras do próprio (eu cheguei a mencionar que ele era um tanto melodramático?).
Explicar para Claudionor que sombras não fazem nada de propósito, elas são o que são, era um exercício completamente inútil.
“eu sei o que elas são, oh sim, eu sei o que elas são.” dizia ele e a conversa acabava por aí.
Quando ele corria, a sombra o acompanhava debochando de sua falta de jeito com uma mímica asqueirosa.
Quando ele comia, a sombra também assim o fazia, roubando sabor em cada garfada.
Quando abraçava, era a sombra quem acariciava as costas nuas.
Quando fazia sexo, era sua sombra quem melhor gozava.

“elas são feitas de vazio” era o que ele defendia.
“elas são pessoas sem substância, sem história, sem nada”
“o vácuo.” Dizia com olhos já bêbados e um tanto quanto filosóficos.
“é por isso que nos odeiam tanto, é por isso que riem com asco de nós”.
E logo então, fitando a garrafa, caía em um profundo silêncio.

“você se lembra dos Sombras?”
“o do gibi?”
Suspirava impaciente.
“se lembra do Faustão? Os que seguiam as pessoas?”
“ah sim, isso! O que que tem?”
“eles sabiam da verdade. Já olhou o que aconteceu com eles?”
Que eu me lembrasse, nada. O google também. E se não está no google, não existe.
“nada?”
“exatamente! Como se eles não existissem mais, você entende?”
Eu não entendia. E ri. O que nunca deveria ter feito.
A conversa acabou por aí.
A partir daquele dia.
Todas nossas conversas.
Houve um lamento da minha parte pela amizade perdida. Foi uma tristeza vaga que com os dias não tardou a ser esquecida, sepultada na memória, como a maioria das amizades perdidas, sendo lembrada apenas eventualmente e por poucos segundos de reflexão.
E assim a vida prosseguiu sem notícias de Claudionor.
Até o dia que ele resolveu se livrar da própria sombra.

Até onde pude apurar, foi em uma manhã de sábado outonal, não muito ensolarado.
Ele entrou em uma ferragem e dali saiu com duas latas de tintas, um pincel, arame, três pregos e uma tesoura.
O que ele realmente queria, eram os pregos e a tesoura, o resto, serviu apenas para que a sombra não suspeitasse de suas intenções.
Todas as compras foram feitas com cartão.
A segunda parte foi a espera.

Aconteceu na velha praça do conjunto habitacional onde vivemos.
Gosto de imaginar que isto teve algum significado, que talvez ele tenha ponderado onde tudo começou. O lugar que ele e sua sombra visitaram no passado.
O fato é que ele ficou sentado nos balanços o dia inteiro, com sua caixa de ferramentas à mão, esperando o momento solar certo.
Aos poucos, o sol se mexeu e sua sombra estava bem ao seu alcance.
Agachou-se bem devagar, como se estudasse algo demorado no solo, como se algum inseto detivesse sua atenção.
Apanhou a caixa de ferramentas.
A sombra o imitava, acentuando o exagero de seus gestos.
Apanhou o primeiro prego e devagar, o aproximou do reflexo negro de sua própria mão ao solo. Indefesa, nada podia fazer além de imitar o gesto (teria corrido ela, eu me pergunto? Se soubesse?) e em um único movimento veloz, cravou o mesmo na palma negra e plana estampada no solo. Afastou a própria mão, como se sentisse uma lancinante dor na palma e uma sensação de frio absoluto, uma reação automática.
Com uma mão presa, prender a outra mão da sombra ao chão foi relativamente fácil, rápido e eficiente, apanhou o outro prego, esperou a mão se espaldar e de novo, cravou o prego na palma da própria sombra, em um gesto impessoal e calculado.
Levantou-se e olhou a própria obra. Ali estava ela a se projetar de seus pés. Um Cristo plano preso de braços abertos na areia, esperando com a paciência dos condenados, por seu terceiro prego.
Foi nesta parte que entrou a tesoura.
Ela foi o objeto limpo que com ela, cortou a sombra que se projetava de seus próprios pés, como um etéreo cordão umbilical.
Foi um único corte e então estava livre, o parto de sua coisa odiosa, finalmente executado. Eram livres e separados: homem e sombra, para seguirem seus próprios caminhos.

Guardou os objetos dentro da caixa de ferramentas e sem pressa se afastou, não olhando para trás em momento algum. Deixou aquela imagem negra de crucificação presa nas areias que pertenceram ao passado, à espera de um incauto para assombrar, à espera de um sol devastador.
Depois daquele dia o frio se tornou um companheiro eterno a ele. Sem sombra a projetar, os raios solares atravessavam seu corpo indo se derramarem lânguidos no chão sob seus pés.
E não sendo captado pela luz, ninguém mais o viu.
Nunca mais.
Mesmo seus amigos, passaram a se lembrar dele vagamente, sempre vagamente.
Foi em uma manhã de sábado outonal, quando o homem caminhou sem sombra pela primeira vez, vestindo seu supremo anonimato.


Fábio Ochôa

segunda-feira, fevereiro 11, 2008

A Gente acha coisas estranhas por aí...


Encontrei estes desenhos nas minhas arrumações.
Bastante velho, não me lembro em que ocasião foi desenhado e nem mesmo porquê, muito provavelmente deve ter sido feita em alguma aula terrivelmente chata, onde eu cobria os cadernos de desenhos, a classe e conversava com a turma do fundão.
Devo ter sido um saco como aluno.

Fábio Ochôa